Texto da convidada Bel (clique) - Blog Controle Remoto
Algumas semanas atrás tive o desprazer de assistir à final do
concurso “Soletrando”, exibido pelo programa
sabatino de Luciano Huck, que oferece bolsas de estudos em valores
deveras tentadores para os alunos que -supostamente- mais estudaram e se
esforçaram. Como professora de línguas, acompanho tal circo desde a
primeira edição, com olhos críticos e muitos facepalms pelo
caminho.
O ponto que torna o “Soletrando” notoriamente ineficaz em relação à
educação das crianças que ali competem, e quiçá ridículo aos olhos de
quem entende o mínimo de educação, é que o sistema de tal
competição é baseado em dois fatores que não medem nem estudo e nem
esforço: sorte e decoreba.
Explico-lhes o porquê.
Falha 1: Obstáculos forçados.
Soletrando nada mais é do que uma cópia fajuta das competições
americanas de Spelling Bee. Essas duas competições formam um
dos mais belos exemplos de tout de même. Num Spelling Bee
temos crianças soletrando palavras escorregadias de sua língua nativa,
assim como vimos por sábados e mais sábados as crianças soletrando
palavras rebuscadas na panelinha do Huck. A diferença é que os
obstáculos de uma criança cuja língua-mãe é o inglês são BEM maiores que
o de uma criança que fala português-brasileiro.
Não somos abençoados por Deus e bonitos por natureza apenas em
relação à nossa geografia e clima privilegiados, mas também por um
sistema fonético bastante claro e coeso. Se eu te falo “nectópode” você
pode até não saber o que significa, mas sabe pronunciar. Sabe até que eu
vou pronunciar “nectópodi”, mas que se escreve com um “e” final, pois
são raros os sotaques que admitem o “e” ao fim de uma palavra, como os
curitibanos que falam “leitE quentE”, enquanto que o resto do país fala
“leiti quenti”. Para o fonema /i/ nós temos duas possíveis soletrações:
“e” ou o próprio “i”.
A criança que fala inglês… pobrezinha… ao ouvir o som “i”, tem
inúmeras possibilidades de soletração. Ela tem o som /i/ equivalente às
escrita de: “ee”, como na palavra see (pronúncia: /ci/); “eo”, como em
people (pronúncia: /pípol/); “oe”, como em phoenix (pronúncia:
/fíniks/); “ey”, como em key (pronúncia: /ki/), dentre inúmeras outras
que eu não seria capaz de citar. E eu mencionei apenas UM som de vogal.
Imaginem agora as outras vogais. E agora imaginem também as consoantes. E
as consoantes dobradas, sem a menor regra clara além da morfológica.
E que obstáculos tem uma criança que fala o português? As velhas
pegadinhas de “com-agá-ou-sem-agá”? O fonema /s/, que pode ser escrito
com “ss”, “sc”, “s” ou “c”? Com hífen ou sem hífen? Jota ou gê?
Entediante, meu caro Hulk. Deve ser por isso que subestimam as
crianças a desafios inaceitáveis, como soletrar kirsch,
que é uma palavra alemã e desclassificou um dos finalistas. Pede pra
ele soletrar “licor de cereja”, pra você ver se ele não faz isso
assobiando e chupando cana ao mesmo tempo. Não teve sorte, como um
garoto na final do ano passado que pegou uma palavra absurda em qualquer
contexto imaginado: “desasado”.
Apesar de
soar estranha, após a definição de que “objeto ou ser que foi desprovido
de suas asas”, foi bem fácil para o aluno deduzir o radical “asa” e o
prefixo “des”. Moleza.
O fato é que, para qualquer pessoa letrada e que costuma ler, como é o
caso daquelas crianças, a língua portuguesa não é um desafio
escorregadio. Ninguém é perfeito e erros ocorrem, mas o português é um
pântano muito menos caudaloso se comparado ao inglês. Já que estamos
falando de inglês, concluo esse tópico abusando de anglicismos:
TUPINIQUIM COPYCAT = FAIL
Falha 2: Estudo retrógrado
Qual não foi a minha surpresa ao ver um dos finalistas estudando o
dicionário para conquistar sua bolsa de 100 mil paus? Deixa eu
repetir isso:
ESTUDAR A PORRA DO DICIONÁRIO.
Me dói o rim ver um aluno estudar dicionário. Com sua
licença, preciso de outro caps-lock: NÃO SE ESTUDA UM DICIONÁRIO, ESTES
SERVEM PARA SEREM CONSULTADOS. É pra isso que existem.
Isso não é uma crítica à memorização de palavras novas. Pelo
contrário, eu exijo que meus alunos de inglês estudem e memorizem o
vocabulário novo como, por exemplo, palavras relacionadas ao tema
“dinheiro”, ou ferimentos que podem ocorrer na prática de esportes. Mas
jamais estudar e memorizar palavras fora de um contexto e uma situação.
Me pergunto se Huck e sua panelinha, incluindo os professores-jurados,
já ouviram falar em embodied meaning.
Pelo amor de Deus, o que há com os diretores dessa escola, e com
esses pais? Eles permitem que seus filhos e alunos PERCAM horas
preciosas do seu dia decorando palavras que jamais usarão, como a
palavra “abissínio”, que eliminou mais da metade dos alunos na
semi-final. Sabe o que significa “abissínio”? Pessoa natural da antiga
região da Abissínia, hoje conhecida como Etiópia. Porra, se Abissínia é
o nome antigo, pra que eu quero que meu aluno me prove
inteligência sabendo soletrar uma nação que nem existe mais? Não seria
mais proveitoso para mim, como professora, que meus alunos soubessem
discursar por cinco minutos sobre os pontos em comum entre Etiópia e
Brasil, dois mundos tão distantes e tão próximos em alguns pontos?
Interpretem seu discurso fazendo um paralelo com a música “O Haiti É
Aqui”, de Caetano Veloso. Pronto, dei-lhes dez minutos de material muito
mais interessante que aquelas crianças chorando porque não souberam
soletrar uma palavra absurda que não existe em seu (e nem no meu)
universo pessoal.
Falha 3: Um sistema em ruínas
Estamos na era moderna (pós-moderna?). Robôs programados para aceitar
sem discutir acumulam-se nas camadas baixas da sociedade, robôs estes
programados para decorar coisas tão inúteis quanto musiquinhas de
campanha política, bordões de novela e que “xanto” é amarelo em grego.
Em uma era em que é cada vez mais importante sintetizar e raciocinar, o
sistema educacional brasileiro ainda preza por decorebas inúteis e
regras que, na vida real, nunca funcionam. Onde estão os debates? As
discussões? A disciplina? Dentro da escola só existem, mesmo, dentro do
dicionário.
O que mais me deixa PUTA é que tal competição oferece prêmios
parrudos aos melhores robôs, aos que memorizaram melhor, aos
que fizeram bem a sua função de decorar sem jamais se perguntarem se
isso realmente lhes acrescentava algo -além, claro, da possibilidade das
pratinhas ao final da competição.
E não é isso mesmo que o sistema todo quer? Robôs bem-educados que
não questionam, apenas pensam no que vão ganhar com várias repetições
idiotas, vazias e inúteis. É por essas e outras que, apesar do salário
baixo, estresses, nervosismos e decepções, não abandono as salas de
aula. Pode me chamar de utópica mas todos os dias tento fazer a
diferença. Antes utópica do que inerte perante a situação calamitosa que
vejo.
Conclusão: E a solução?
Proponho, ao invés de soletrações chatas, sessões de debate.
Os alunos aprenderiam a argumentar, raciocinar, persuadir e ponderar
-tudo isso sem jamais agredir ou desrespeitar o adversário. Aprenderiam a
questionar, refletir, expor ideias e aprender com o discurso do outro.
Aprenderiam a reconhecer falácias, e a desmontá-las como argumentos
infundados. Veriam o quanto são manipulados e influenciados pelos
discursos que só soam como verdade porque são repetidos ad nauseam
em seus intelectos talentosos, porém ainda em formação.
O problema é que aí não tem tem menino chorando e musiquinha de
suspense. Daí, não tem circo. Se não tem circo, não tem audiência. Se
não tem audiência, quem vai pagar a bolsa de cem mil paus pros guris? E,
cá entre nós, o grosso da nossa população nem teria como acompanhar um
debate com fins educacionais, se nem um debate político é assistido com
afinco.
Ao menos o Soletrando reforça a ideia de que o estudo traz, sim,
retorno palpável. Estudando chega-se em algum lugar. Mas eu digo estudar
DE VERDADE porque, se apenas decora-se o dicionário, o mais longe que
você chega é mesmo no fundo do poç… digo, do caldeirão.
A autora desse texto foi a mocinha abaixo, chamada Bel
e grande amiga da galera do Controle Remoto (Felipe Neto e Marcel).
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